CRIANDO NOSSOS PRÓPRIOS LIVROS NEGROS: mantendo um diário como um tear da vida[1]. Por Mónica Pinilla Pineda.

Publicado em Journal of Analytical Psychology (Feb. 2022)

Resumo: Os Livros Negros de Jung são anotações de seu mundo interior após seu processo de autoexperimentação, que ele chamou de seu “confronto com o inconsciente”. Eles precederam O Livro Vermelho no qual, como escriba, ele reformulou suas notas e desenhos iniciais. Esta foi a matéria-prima para o trabalho que Jung desenvolveu pelo resto de sua vida. A partir de sua experimentação, ele formulou o método da imaginação ativa e o conceito de função transcendente, uma função psicológica que cria símbolos e integra os conteúdos inconscientes na consciência. Jung nos convida, com sua experiência, a escrever e pintar nossos próprios Livros Negros e explorar nossas imagens internas. Com esta proposta de manter um diário como um tear da vida, saudamos seu convite, que nos permite tecer e integrar as substâncias visíveis e invisíveis de nossas vidas. Nossa intenção para o diário é fornecer um espaço para o desdobramento do processo de individuação. No convite de Jung, vemos que uma vida que não se confronta não pode ser realizada como tal.
Palavras-chave: imaginação ativa, Os Livros Negros, diário interno como um tear da vida, O Livro Vermelho, função transcendente

Símbolos. Tudo símbolos… Se calhar, tudo é símbolos… Serás tu um símbolo também?
(Fernando Pessoa 2012)

Introdução

Os Livros Negros de Jung (2020) foram recentemente publicados. Consistem nos cadernos em que Jung escreveu, entre 1913 e 1932, anotações sobre o seu mundo interior. Estes Livros Negros precederam o trabalho do seu Livro Vermelho, no qual transcreveu e retrabalhou as suas notas e desenhos iniciais como escriba. Após a crise que viveu após a sua briga com Freud, Jung iniciou um processo de autoexperimentação, a que se referiu como o seu “confronto com o inconsciente”. Ele esteve envolvido em práticas meditativas

a fim de aprofundar-se em si mesmo para obter material do inconsciente sob a forma de imagens e diálogos. O material que ele reuniu inicialmente nos cadernos negros tornaram-se a base para a redação do consequente Livro Vermelho, em que ele escreveu e pintou a sua exploração interior. Nas suas memórias Jung comenta:

Todas as minhas obras, tudo o que criei espiritualmente, partem das minhas imaginações iniciais e sonhos. Em 1912, comecei aquilo que durou quase 50 anos. Tudo o que eu fiz na minha vida posterior está contida neles, embora apenas sob a forma de emoções ou imagens. (Jung 2002, p. 229)

Começando pelo seu confronto com o inconsciente, Jung continuou a formular e descrever o seu método de imaginação ativa no seu texto de 1916, A Função Transcendente. Aqui, desenvolve o método para estabelecer contato com os conteúdos do inconsciente através da ativação da função transcendente – uma função psicológica que cria símbolos enquanto integra os conteúdos inconscientes na consciência. Inicialmente, intitulei este artigo: “Fazendo os nossos próprios Livros Vermelhos”, mas estabeleci-me em “Criando os nossos próprios Livros Negros”, tanto por consideração das próprias pretensões de Jung, como também por causa da sua proposta, ou seja, convidar alguém a manter um diário como o tear da vida. É um convite simples e complexo para o autoconhecimento por meio de anotações escritas e pintadas desde explorações e descobertas de nossos mundos internos.

Imaginação ativa e a função transcendente

Com a publicação de Os Livros Negros de Jung (2020), somos testemunhas da sua exploração interna e dos símbolos que surgiram graças à função psicológica transformadora da energia ou da função transcendente. É impressionante que o editor de Os Livros Negros (2020) os tenha subintitulado Cadernos de Transformação, aludindo tanto a seu conteúdo simbólico quanto a seu potencial transformador. No entanto, podemos reconhecê-los como diários do percurso interior que Jung empreendeu a partir de 1913, após o seu desentendimento com Freud. Em sua palestra “Imaginação Ativa: uma Introdução”, Murray Stein (2020) comenta que, na década de 1980, teve o privilégio de passar alguns dias com Michael Fordham, colaborador próximo de Jung. Em um momento durante esses dias, Fordham lhe perguntou: “Sabes qual foi a maior descoberta de Jung?”.

Enquanto Stein pensava que lhe falaria sobre os arquétipos ou o inconsciente coletivo, Fordham respondeu: “A maior descoberta de Jung foi o mundo interior”.

Esta descoberta foi o produto da viagem que ele empreendeu através da imaginação ativa e que, a partir daí, seria a sua forma de descobrir e trabalhar com os conteúdos do inconsciente. Foi uma viagem interior, cuja compreensão e integração não só ocuparia o resto da sua vida, mas seria também o legado que ele deixaria para a humanidade. Os primeiros esboços de sua exploração refletiram-se em Os Livros Negros (2020) e as suas primeiras elaborações podem ser encontradas em O Livro Vermelho (2010). Jung reconhece este processo como fundamental:

Os anos em que eu já estava tentando clarificar as imagens internas constituíram a parte mais importante da minha vida na qual tudo o que era essencial foi definido…. Toda a minha atividade subsequente consistia em aperfeiçoar o que brotava do inconsciente, e que começou a inundar-me. Foi a matéria-prima para o trabalho da minha vida. (Jung 2002, p. 237)

Reflitamos sobre o processo de imaginação ativa que facilita esta abordagem ao inconsciente e à produção espontânea de imagens. Walter Boechat (2017) sintetiza o processo de imaginação ativa em quatro ações sucessivas: 1) esvaziar; 2) entregar; 3) engravidar; e 4) confrontar eticamente. A primeira coisa é esvaziar a mente do conteúdo diário, para que a as imagens do inconsciente possam surgir espontaneamente. Então, a interferência da consciência cessa e as imagens que emergem são seguidas. Assim, a imaginação é autorizada a voar livremente, deixando-se levar pelas imagens que são contempladas, enquanto elas seguem o seu curso. De acordo com Jung, algumas pessoas permitem que suas mãos expressem estas imagens por meio de materiais plásticos, enquanto outras o fazem por intermédio da dança e do movimento. De qualquer forma, Jung recomenda que a experiência seja registada por escrito ou por desenho. Isto permite a plena expressão tanto da experiência vivida quanto da emoção sentida, na tentativa de moldar, de forma tangível e simbólica, o conteúdo que tenha surgido, tornando-o, de alguma forma, acessível à consciência. “Isto supõe o início da função transcendente, ou seja, a colaboração entre o inconsciente e os dados conscientes” (Jung 1916/1959, par. 167).

Jung se refere à importância de trabalhar com os conteúdos do inconsciente a fim de enfrentar e, depois, integrar o material compensatório na totalidade da personalidade, produzindo, assim, uma maior consciência que ajuda a promover o equilíbrio. O ego, o sujeito central da consciência, tende a ser considerado o condutor principal, sendo o seu alcance limitado e unilateral. No prólogo de A Função Transcendente, Jung afirma:

O método da imaginação ativa é o principal recurso para a produção dos conteúdos do inconsciente que estão, de certa forma, abaixo do limiar da consciência e que, uma vez intensificados, seriam os primeiros a irromper nele espontaneamente… O significado e o valor destas fantasias não são revelados até que elas sejam integradas na totalidade da personalidade, isto é, até que se enfrente o seu verdadeiro significado e os confronte moralmente. (Jung 1916/1959, p. 71)

Jung compara esta função psicológica que articula o inconsciente na consciência com a função matemática que articula números reais e imaginários. Em seu livro Símbolos da Transformação (1912/1952), Jung propôs a existência de dois tipos de pensamentos. Um é um pensamento dirigido, racional e linear que se adapta à realidade externa. Este é o pensamento da consciência e da ciência. O outro é o pensamento fantasioso, que é circular e associativo, e está mais próximo do inconsciente. É a linguagem própria dos mitos, da imaginação, e dos sonhos.

A integração destes dois tipos de pensamento é de importância vital. Aqui, encontramos a capacidade de criar símbolos que revelam forças e conteúdos que guiam os assuntos fundamentais da alma humana. Este foi o trabalho que Jung desenvolveu, em seu Livro Vermelho, transcrevendo e tentando compreender, por intermédio de explicações e elaborações poéticas, o significado das imagens e emoções que o inundaram, traduzindo-as em figuras personificadas e diálogos que mantinha com eles. Na introdução ao Livro Vermelho, Shamdasani comenta:

Jung argumentou que o significado destas fantasias estava ligado ao fato de elas terem surgido da imaginação mitopoiética, que desapareceu na presente era racional. A tarefa da individuação reside no estabelecimento de um diálogo com as figuras de fantasia – ou conteúdos do inconsciente coletivo – e na sua integração consciente, para recuperar, assim, o valor da imaginação mitopoiética.(Shamdasani 2010, p. 209)

Shamdasani comenta que Jung, após a sua experiência de confronto com o seu inconsciente, sugeriu que os seus pacientes pintassem e escrevessem as imagens que emergiam dos seus processos internos, ou seja, convidou-os a fazer as suas próprias anotações como diários ou cadernos de transformação. Em uma carta a Gilbert, ele comentou: “Às vezes, considero útil, para tratar de um caso, dar ao paciente a coragem de expressar o seu conteúdo particular, seja na forma de escrita ou por meio do desenho e da pintura” (Shamdasani 2010, p. 217). Isto também é reconhecido por Boechat, como a seguir: “Com a intensa experiência do seu próprio inconsciente, que ele expressou no Livro Vermelho, Jung nos convida a escrever o nosso próprio Livro Vermelho e confrontar as nossas próprias imagens” (Boechat 2017, p. 66).

Os Livros Negros vão criar desafios para a compreensão do trabalho de Jung, assim como O Livro Vermelho o fez na última década. Ambos os livros são realmente os registros íntimos da jornada interior que Jung empreendeu e que ele chamou de seu experimento mais difícil: o confronto com aquele universo interior do inconsciente, que surgiu da sua busca pelo seu mito interior e da sua alma quando estas foram perdidas.

A minha experiência com diários: cadernos de exploração humana

Na sua introdução ao O Livro Vermelho, Shamdasani diz: “Os Livros Negros não são diários que registam eventos…. Em vez disso, são registos de uma experiência”. (Shamdasani 2010, p. 201). Ele entende “diários” como registos de ocorrências e eventos externos, preferindo, portanto, chamar a esses textos de ‘cadernos de notas de transformação’. Shamdasani considera Os Livros Negros como os registo das imaginações ativas de Jung e a representação dos seuss estado mentais, bem como as suas reflexões sobre eles. Seguindo esse registro feito por Shamdasani, assumirei e compreenderei os diários, em termos gerais, como cadernos do mundo interior da pessoa que os mantém. São cadernos que coletam não só eventos externos, mas também imagens, sonhos e emoções. Desde o início da escrita, os diários acompanham os processos de exploração interna e criatividade humana. Encontramos muitos exemplos dos mundos da arte, literatura e filosofia – O diário de um escritor, de Dostoyevsky’s (2010) (um exercício na escrita que o ajudou a incubar a sua obra literária); O Diário de Frida Kahlo (2008) (um recipiente para o seu mundo emocional, assim como um lugar para os esboços de muitos dos seus quadros); os muitos diários de viagem de Goethe; os famosos Cadernos Negros de Heidegger (2017) (no qual o pensador reflete sobre o seu itinerário filosófico); e o Diário de Kierkegaard (1993). Todos estes cadernos, alguns com desenhos, são verdadeiramente um laboratório de incubação para obras de arte e pensamento humano. Estes são cadernos de anotações que contêm, como Os Livros Negros de Jung, a matéria-prima do trabalho de uma vida.

Todos nós já tivemos alguma experiência com diários. Por exemplo, quando criança, lembro-me de ter um diário com uma pequena chave para o qual fiz confissões. O meu diário foi o meu primeiro temenos ou contentor, um local seguro com uma chave onde as minhas confissões podiam ser protegidas de olhares externos. Lembro-me de escrever para mim e para um outro, mais sábio, dentro de mim, durante cada crise existencial que passei durante a minha adolescência e juventude, especialmente naqueles momentos de encontro com o amor e o desamor, ou seja, momentos de perda. Estes cenários são marcados por encontros com o vazio emocional da ausência, pequenas aprendizagens da morte. Um diário acompanhar-me-ia sempre nas minhas viagens.

Há muitos anos que mantenho um diário com as minhas reflexões, intuições e sonhos. O meu diário serviu também como um ritual necessário para marcar o encerramento e a abertura dos anos. Além de escrever, também fiz uso da cor e colagens sobre o desenvolvimento da minha vida. Espontaneamente, tendia a ilustrar os escritos com imagens que surgiram nesse espaço do meu diário, espaço em que entrei e ao qual procurei regressar. O meu diário serviu como um espaço interior que, paradoxalmente, estava localizado no exterior. Sem dúvida, ele era um espaço de transição entre o interior e o exterior. Processos inesperados de expressão e elaboração foram desencadeados em meu diário. O diário era um laboratório de interioridade.

Já com a experiência dos meus diários, em 2008 explorei o intensivo processo de diário de Ira Progoff’s (1992) com o meu professor Alejandro Angulo. Este importante encontro de ‘dois mestres’ ajudou-me a ligar o método de Progoff à experiência de Angulo com os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e com o caminho espiritual de muitos místicos. Este trabalho de diário foi, para mim, como o amor à primeira vista. Esta relação entre a interioridade humana e a escrita parecia ser parte de mim.

Um ano depois, em 2009, com alguma inquietação, embarquei na jornada do Seminário de cinco dias do Diário Intensivo de Progoff. Embora isto tenha sido realizado numa língua que não conheço muito bem, descobri uma nova dimensão do tempo e o meu interesse cresceu. A imagem que emergiu no final da primeira oficina de diário em grupo foi um tear manual – um quadrado de madeira sobre o qual desenhei um tecido multicolorido, suspenso entre as estrelas. Escrevi: “diário interior: um tecido multicolorido que me conecta e me joga no infinito”. Eu havia começado recentemente a minha formação como analista Junguiano. Nesse mesmo ano, O Livro Vermelho foi publicado. Escrever e pintar em um diário sempre foi uma prática Junguiana para mim. Alguns anos antes, o meu trabalho de mestrado em literatura tinha sido uma análise arquetípica de um romance autobiográfico de Elena Poniatowska que eu chamei de “Tecendo uma Vida na Fleur-de-Lis de Elena Poniatowska”. Já aí, meu interesse pelo autobiográfico e a sua compreensão como ‘tecido’ apareceu.
Sem o saber, todos estes fios conduziriam à proposta de acompanhar os outros enquanto mantêm o seu diário como o tear da vida.

O diário como o tear da vida

A proposta do Tear da Vida foi configurada como um método de trabalho sobre si mesmo seguindo um antigo caminho de exploração pessoal: manter um diário íntimo. O trabalho individual é realizado em um diário em uma sessão de grupo sentado em silêncio compartilhado. Inicialmente, várias áreas da experiência de vida são abordadas, tecendo fios da vida histórica que desenvolvem a base de uma autobiografia, não para os outros, mas para si mesmo. Em segundo lugar, fios invisíveis de conexão com o tecido interior da sabedoria são estimulados para que se busquem ligações com o espírito das profundezas a fim de descobrir o mito que dá sentido à vida em si. O tear da vida é uma forma de se referir metaforicamente à função integradora da psique por meio da sua capacidade de autorregulação e produção de imagens simbólicas, como Jung recomendou. Podemos recordar do poeta Rilke (2007): “Antes de olhar para fora … Deixem-me olhar para dentro de mim”. Ao tecer a vida através de um diário, empreende-se uma viagem de auto exploração e descoberta interior que apoia o desenvolvimento do processo de individuação. Uma vida que não é tecida é uma vida que não pode ser realizada como tal.

Ao trazermos à mente a imagem de teares artesanais antigos (ver figuras 1 e 2), descobrimos que a tecelagem é uma atividade que ocorre no entrelaçamento de fios entre um eixo vertical e um eixo horizontal. Os fios de base são os de urdidura. Os fios que se entrelaçam são a trama com a qual ela é tecida. Neste cruzamento de fios, o têxtil é fabricado. A respeito da imagem do tecido, O Livro de Símbolos (2011) afirma que:

O cruzamento de dois conjuntos de fios perpendiculares – chamados urdidura e trama – é o princípio básico da tecelagem. Com estas técnicas simples, são produzidos tecidos de tal complexidade que a tecelagem se tornou uma imagem do mistério da existência. É o cruzamento do tempo e do espaço, onde os mundos visíveis e invisíveis se entrelaçam, onde cada forma criada se torna um fio na grande tapeçaria da vida. (Martin 2011, p. 456).

Figura 1. Tecelã de cintura Guatemalteca. Artista: Marilyn Anderson. (Anderson 2016, p. 35).

Neste entrelaçamento entre urdidura e trama é gerado um tecido que conecta a terra e o céu, o visível e o invisível, a matéria e o espírito. A barra superior da armação do tear é chamada de raio do céu, enquanto que a barra transversal representa a terra. Entre o céu e a terra, o tecido é entrelaçado como a criação. Da mesma forma, as nossas vidas são tecidas como fios num tear. O entrelaçamento destes fios visíveis e invisíveis forma o tecido único de cada vida humana.
Na mitologia, três mulheres fiandeiras estão na origem de cada vida. Elas são as deusas do destino. Na mitologia Romana, as Parcas, na mitologia Nórdica, as Nornas, e na mitologia Grega, as Moiras – Cloto, que tece o fio da vida; Láquesis, é quem o mede e o distribui e Átropos, a inexorável, que decide quando cortá-lo. O fio representa o tempo que nos é dado. Nascimento, vida e morte, os elementos constituintes de toda a vida, são representados por estas três deusas fiandeiras do destino humano. Podemos ver como a vida está relacionada com a metáfora da tecelagem. Entramos na espiral da vida quando a nossa existência começa a ser fiada com o fuso. “E tudo começa com um único fio, como Platão nos diz, enrolado em torno do fuso do cosmos rotativo que é mantido no colo de uma mulher, que cria o destino do mundo ao girá-lo” (Martin 2011, p. 458).

Figura 2. Fiandeira de algodão Guatemalteca. Artista: Marilyn Anderson (Anderson 2016, p. 25).

Também é fiado pelo diário, assim como é feito com o algodão que é passado através do fuso para obter o fio com o qual se tece. O tear da vida expressa o trabalho que realizamos para entretecer o visível e a substância invisível das nossas vidas em um diário. Este processo exige que se faça fios, tecendo fios que se soltaram, descobrindo a urdidura em que a nossa vida é sustentada e as tramas, visíveis e invisíveis, que lhes deram a sua forma e cor particulares.
O diário é uma forma de tecer nossa própria vida e de nos tecermos no grande tear da vida. Primeiro, tecem-se os fios da vida pessoal, reconhecendo a urdidura que nos estruturou e descobrindo as tramas da própria vida. Assim, o campo dos complexos pessoais é abordado, com o objetivo de ampliar a consciência biográfica. Trabalha-se em torno da dimensão espaço-tempo: onde estou na minha vida?, de onde venho?, e de onde é que o tecido da minha vida parece levar-me? É assim que se desenvolve uma “Autobiografia para si”. É um desenvolvimento provisório porque, enquanto vivermos, sempre teremos material para continuar alimentando a biografia. Em segundo lugar, os fios invisíveis e o sentido vital são forjados. Aspectos que emergem no processo de aprofundamento do mundo interno através de sonhos, imagens emergentes em meditação

e a personificação das emoções através de diálogos internos, são abordados. É um convite para se deixar guiar pela sua própria natureza arquetípica e pelo Si-mesmo, que, como um arquétipo totalizante, autorregula a psique e transcende o ego. Com a abordagem dos conteúdos inconscientes, procuramos conectar com o espírito das profundezas e isto traz para a superfície a questão do mito interno que guia ou interfere com o sentido vital.
Ao tecer a vida através de um diário, procura-se empreender uma jornada que apoia o desenvolvimento do processo de individuação, ou seja, de percorrer um caminho de realização pessoal em conexão com o mundo. Este processo é sobre se tornar quem se é ao desenvolver uma personalidade individual, encontrando um modo de vida para validar tanto a verdade interior como o mundo exterior. De acordo com Jung, “como o simbolismo tem mostrado desde os tempos antigos: a individuação não exclui o mundo, ela o inclui” (Jung 1947/1954, par. 432). O objetivo da individuação é, portanto, alcançar um desenvolvimento individual, o que permite o paradoxo de ambos se diferenciarem – separar-se do mundo – ao mesmo tempo que nos mantemos unidos ao mundo ou, em nossos termos, conectados ao tear da vida. No seu livro Jung e o Caminho da Individuação, Murray Stein (2007) ressalta a importância de encontrar um espaço para individuação. Ele questiona qual seria o espaço psicológico em que podemos manter este processo ativo. Caracteriza este espaço como hermético, aludindo ao deus Hermes, o mensageiro entre as fronteiras da consciência e do inconsciente. A função da imaginação ativa é constelar este espaço hermético dentro do indivíduo. A nossa proposta é para que o diário, como um caderno de transformação, possa se tornar um espaço ativador para a processo de individuação.

A título de encerramento

O Tear da Vida é o nosso convite para ter um espaço para o processo de individuação. Neste sentido, é um laboratório de incubação – um convite para os nossos pacientes que também pode ser facilitado em contextos de grupo. Este método também tem sido implementado em grupos em contextos universitários e, desde 2017, em várias regiões da Colômbia com juízes, procurando ampliar seu desenvolvimento humano por meio de dinâmicas complexas de polarização e violência, bem como na busca de uma transição para a paz. Como Jung mostrou, o desenvolvimento da nossa personalidade só é alcançado entrando na exploração do mundo interior, confrontando-nos com o seu conteúdo e permitindo-lhe transformar e expandir a consciência. Os Livros Negros (2020)

são uma porta se abre na exploração de Jung, assim como aconteceu com o seu desafiador e, ao mesmo tempo, o magnífico O Livro Vermelho (2010). Convidamo você, assim, a coletar sua própria matéria prima em diários que, como espaços de transformação, facilitam a integração tanto de aspectos conscientes quanto inconscientes na nossa própria atitude vital. Neste processo de nos tornarmos nós mesmos, assumimos a tarefa de integrar os fios visíveis e invisíveis da nossa vida no grande tear da vida.

References
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[1] Tradução por Luzia Regina Maia (tradutora) e Filipe de Menezes Jesuino (revisor técnico).